Para sair por aí
. Rascunho.
Imaginar cenários hipotéticos é um dos meus passatempos favoritos. Quanto mais detalhada, mais satisfatória é a imaginação. Como uma caravela sendo montada cuidadosamente dentro de uma garrafa, ainda que nunca vá ser utilizada para navegar oceanos reais. E um desses meus cenários hipotéticos é sair por aí sozinho para conhecer lugares novos, sem intenção de voltar para casa. Ou de ter uma. O que, mesmo em uma fantasia descompromissada, levanta algumas complexidades interessantes.
Para começar, o próprio fato de me imaginar sozinho, por qualquer que fosse a sucessão de acasos que me levaria a essa história, se dá justamente para tentar desintrincar os requisitos desse universo imaginado. Por óbvio, pensar em apenas um é menos caótico que em mais de um. Além disso, pelo menos outras duas arbitrariedades precisam ser assumidas, sem as quais a fantasia sequer despontaria. Primeiro, a disponibilidade de recursos financeiros virtualmente infinitos. Segundo, a inobservância de qualquer compromisso laboral para obter tais recursos.
Então dados esses parâmetros, alguns detalhes precisam ser definidos.
Ao se imaginar indo a algum lugar, a primeira decisão talvez devesse ser o destino. Mas o destino se dá em função da motivação da ida. E neste caso, minha motivação nasceu de relatos de pessoas praticando o que chamam de overlanding. O termo surgiu na Austrália, na primeira metade do século passado, para descrever o desbravamento de terras inexploradas, o que acabava levando a uma delineação mínima do que viriam a ser as estradas para futuros colonizadores.
Mais ou menos à mesma época, outros aventureiros ao redor do mundo partiam em suas próprias jornadas, como se o impulso pela partida estivesse no DNA da nossa espécie — e é até provável que esteja. Os objetivos eram diversos, sim, mas as dificuldades eram equivalentes, cada qual com sua particularidade. Do Reino Unido europeu aos confins da Etiópia africana; do Alasca, no norte da América do Norte, a Ushuaia, no sul da América do Sul.
Até hoje, ainda que geralmente por trajetos mais curtos, a prática se repete com o mesmo entusiasmo. É verdade que, nos dias atuais, já sabemos da existência de todos os lugares do planeta. Seja através de desenhos cartográficos, em mapas fotografados de longe por uma dezena ou mais de satélites artificiais, seja pelas vias pavimentadas por onde se passa. Mas ainda assim, mesmo sem o completo desconhecido como destino incerto, há algo em comum entre estes aficionados pela ideia de sair por aí, praticando overlanding moderno apenas por prazer: o uso de veículos 4x4.
E se a motivação é tentar reproduzir a experiência desses viajantes, o único critério de escolha do meu destino é que seja alcançável por terra, a bordo de um 4x4. Ou ao lado de um, excepcionalmente, quando embarcado ao cruzar algum trecho de água intransponível sobre rodas.
Logo, saindo da cidade do Rio de Janeiro, preciso apenas me ater ao perímetro continental para cumprir esse requisito imaginário. O percurso em si, para conseguir cobrir boa parte de toda essa grande extensão de terra, pode ser pensado organicamente mais tarde, ao longo do caminho. O que nos leva à próxima decisão imaginária para estrear esse caminho.
Um veículo 4x4. Na sua definição literal, um carro com tração nas quatro rodas. Mas na hora de escolher um, a enorme variedade de opções pode ser paralisante.
Tradicionalmente movidos a diesel, hoje também temos versões a gasolina; ou versões híbridas, combinando motores elétrico e a combustão; ou, por que não, versões com motorização totalmente elétrica. Alguns com bloqueio de diferencial, outros que controlam a tração eletronicamente. Suspensões com mais ou menos curso. Diferentes capacidades de travessia de alagamentos. Variados níveis de conforto, performance, autonomia e volume de carga. Mesmo assim, nenhum modelo consegue ser perfeito ao permutar todas as possíveis combinações de características, algumas técnicas, outras nem tanto.
Começando por um resgate histórico, cabe lembrar que o substantivo jipe, que utilizamos genericamente para nos referirmos a certos modelos off-road, vem da sigla GP, na sua pronúncia em inglês. As iniciais podem se referir a Government Purposes ou General Purpose, não se sabe ao certo. Essa teria sido a sigla utilizada pelo governo americano ao encomendar um veículo com as características necessárias para o campo de batalha, logo no início da Segunda Guerra Mundial. O projeto resultou no jipe Willys. Ainda que muita gente talvez não o conheça pelo nome, suas linhas retas e aparência robusta definem bem a imagem que nos vem à cabeça ao pensar na categoria.
O jipe Willys evoluiu para o que hoje conhecemos como Jeep Wrangler.
Outro ícone do fora de estrada, a Defender, da inglesa Land Rover, é sinônimo de brutalidade e superação. Este veículo é tão emblemático que desde 2012 é estampado na cédula de 50 cuachas, no Malawi — país no sudeste da África. Seus mais de 18 milhões de habitantes, organizados em pelo menos uma dúzia de grupos étnicos, fazem inveja pela diversidade de paisagens exuberantes, mas que nem sempre foram de fácil acesso. Algumas nunca serão.
Batizado na década de 80 como Defender, o modelo na verdade é a evolução de uma linhagem da Land Rover que remonta à década de 40, também a partir do precursor Willys, mas aqui na sua versão britânica.
Por muitos anos, o modelo seguiu fielmente a mesma essência. Não só nos icônicos traços retos e nas janelas alpinas, mas também na rusticidade e simplicidade dos componentes.
Em 2020, a Land Rover, que a essa altura já se chamava JLR depois de algumas fusões, decidiu substituir a rusticidade e todos os problemas inerentes por uma assinatura mais moderna. Felizmente, o novo modelo se tornou mais econômico, mais seguro, mais confortável e mais autônomo. Esse redesenho atrai um público maior, em especial aqueles que precisam dividir o uso do carro no fora de estrada com o asfalto — quase sempre mais neste do que naquele. Além disso, consegue atender a legislações cada vez mais rígidas em relação a segurança e controle de poluentes.
Continua...
Por Desmond Greenwich, desmondgreenwich@gmail.com.